sábado, 19 de maio de 2007

Lana Fúlvia

Porque hoje é sábado, um exercício de ficção, pura ficção. Semelhanças com personagens vivos, muito vivos, quase mortos, é mera coincidência.
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- Lana Fúlvia está aí fora. Mal tinha assumido como vereador e nem podia dar bronca na secretária, Cláudia, filha do líder do partido. Lana Fúlvia, pensei, ou é travesti ou atriz pornô. O nome soava artificial, no tradicional padrão arrivista. Lana Fúlvia. Eu viria a descobrir que era perfeito.
- É assessora do gabinete e quer entregar uns papéis...
Melhorou. Tudo aquilo para mim era novo, até o nepotismo - tive que engolir também esta Lana. Acordos do Partido.
- Mande entrar. Vamos ver.
Quando Lana Fúlvia surgiu vieram-me à mente os anagramas possíveis daquele nome. Alta, bonita, barriga-tanquinho escandalosamente exposta, andar ligeiramente genuvaro e o foreves insolente, modelado na invariável calça colante. (No Brasil nunca se respeita o dress code). Português esquálido: confundia post it com postiche; gostava mais de bolsas que do trabalho. Carregava uma pilha de papéis.
- Trouxe-lhe o material daquele projeto-de-lei.
A moça queria impressionar. Perda de tempo, já conseguiu com a indumentária até obscena, detalhando o atributo insolente. Mais perto, quase caí com o impacto do mau hálito. Nem olhei os papéis, descartei logo a moça. Jogada mais velha, essa.
Passei a semana seguinte tomando pé na atividade parlamentar. Colegas, assessores, eleitores, lobistas, tudo me deixava aturdido. Acabei esquecendo Lana Fúlvia. Ela não me esqueceu.
- A doutora Fúlvia quer falar.
Cláudia, cúmplice ou envolvida no encanto fulviano. Logo percebi que Lana adorava seu nome. Lá dentro de mim a voz maldosa recitando o anagrama de Lana. Desta vez vinha num vestido longo, solto, vaporoso mas explícito o suficiente para sempre sugerir a insolência das formas. Perfume de qualidade. Pensei: não entra no “rachide” da Casa. O hálito ainda pesado, que ela disfarçava pondo o indicador entre o lábio superior e o nariz. Infeliz no decote, que fazia adivinhar seios murchos, caídos.
- Trouxe-lhe o relatório, vereador.
Dei olhada rápida. Vou ler depois. Lana Fúlvia não ia embora.
- Temos amigos comuns, vereador.
Tinha feito o dever de casa; descobriu relações, lembrou pessoas que eu conhecia, e outras que nem pintadas eu queria conhecer. Sempre tentando impressionar. Mais provinciana impossível, a Lana Fúlvia.
Onde eu fosse, lá estava ela, roupas e andar torturando o imaginário masculino. Maior a minha indiferença, mais intenso seu interesse.
O outro personagem é Stélio N. Fernandes, presidente da Casa. O “N” um segredo de Estado. O presidente escondia, detestava o nome do meio, erro do tabelião e distração do pai semi-analfabeto: era para ser Stélio Natálio, e não é que o tabelião trocou o “l” por um “r”? O menino Natário só veio a descobrir aos dezesseis, na matrícula do curso supletivo.
A origem humilde foi o estímulo. Jovem até bonito, agradável, insinuante, começou por cima, gerente de pequeno comércio do tio – mas já filiado ao Partidão (transitou intocado durante a Repressão). Dali foi um pulo: mudou de Estado e chegou a secretário de finanças no Norte. Saiu de lá tão rápido quanto chegou; descobriu-se dinheiro em sua conta e ele não explicou a origem. Aprendeu rápido o valor de intermediários e laranjas.
Stélio Natário estava no quinto mandato, três seguidos na presidência. Controlava tudo, de vereadores a contínuos; todos lhe deviam alguma coisa, e todos pagavam, em gênero e espécie; seu gabinete sempre provido de comidas, bebidas, aduladores e mulheres – duas, passadonas, tinham sido de sua “cota pessoal”; hoje, penduradas nas sinecuras, olham com desalento e rancor as novas safras. O poder é afrodisíaco. Não fosse, Stélio sequer daria conta do dever de casa: obeso, dentadura mal aplicada, papada, cabelos ralos, o cinto contendo a barriga perigosamente nas proximidades do púbis, péssimos hábitos à mesa, hipertenso e diabético, no limiar do alcoolismo.
Lana chegava ao fim da última safra. Logo baixaria para a cota das passadas, nova safra despontando. Até hoje não sei se Lana tentou aproximação para escapar do rebaixamento ou era agente infiltrado de Stélio. Há precedentes. Stélio já plantara Janaína, baixada na cota pessoal, como assessora de colega nosso. Lana, incansável, não tanto a alpinista social, mas a mulher vaidosa tentava a todo custo descobrir onde falhava comigo na sedução. Nunca conseguiu. Eu descobri: caráter.
- Achei na internet um relógio antigo, daqueles tipo armário. Está num leilão em São Paulo. O Senhor podia ir ver. Cláudia, aduladora, antecipando vontades. Reservou passagem e hotel. Precisava de pausa da pressão na Câmara. Durou pouco.
- Que coincidência, vereador! Lana Fúlvia sentada exato no assento vizinho do avião. Indo em férias para S. Paulo e encontro o senhor aqui e agora! Coisas do destino, vereador. Lá fomos (viagem curta, felizmente), eu sufocado pelos elogios de Lana e pelos relatos de sua vida movimentada, elegante e plena de personalidades de valor duvidoso.
À noite, no hotel, cansado (cobriram meu lance no leilão), um uísque rápido, banho e um telefonema para Cláudia só para confirmar o que eu desconfiava: Lana soubera da viagem, vôo, destino. Até do hotel. Armação completa, só me falta ela aparecer aqui no quarto. Na Câmara aprendi que ingenuidade é fatal. Bingo! Batida na porta. A própria. Havia se hospedado no hotel e queria conversar. Desta vez minissaia de couro, decote generoso – os seios turbinados recentemente. No resto, igual, muito vulgar.
Fui salvo pelo Fróes, amigo de infância, que sabendo-me em S.Paulo tem sempre um pretexto e parceiro para garimpar restaurantes. Naquela noite, salvo do encanto fulviano, até enfrentei um pulpo en su tinta no Don Curro. Salvo, sim, pois como ia explicar na Câmara ter dispensado a Lana, e naquelas condições tão favoráveis? Nessas horas um bom pretexto vale ouro.

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